O índio branco
Não sei muito bem como é possível, mas a verdade é esta: sou um índio. Não o sabia antes de ter encontrado os índios, no México e no Panamá. Sei-o agora. Não sou talvez um índio muito bom. Não sei cultivar o milho nem afeiçoar uma piroga. O peiote, o mescal ou a chicha mastigada sobre mim não exercem grande efeito. Mas quanto ao resto, quanto à maneira de andar, de falar, de amar ou de ter medo, posso dizer o seguinte: quando encontrei esses povos índios, eu, que não julgava por aí além ter família, senti-me como se de repente tivesse conhecido milhares de pais, de irmãos e de esposas. Como sempre, porém, quando uma pessoa pretende falar de um povo, quando se põe a adivinhar as paixões e os desígnios de uma comunidade que não é a sua, e mesmo que não creia forçosamente na ciência, corre sempre grandes riscos. Assim acontece com estas páginas, escritas para falar de gentes cuja grande virtude é a de serem inacessíveis e silenciosas, porque, desgraçadamente, estas páginas só sabem falar do seu autor.
Há, no entanto, outra coisa: na altura em que este livro termina apercebo-me de que seguiu, sem eu disso me dar conta, e como se fosse por acaso, o desenvolvimento do cerimonial mágico de cura: Taú Sa, Beka, Kakvahaí. Serão pois estas três etapas, que arrancam o homem índio à doença e à morte, precisamente as mesmas que balizam a vereda de toda a criação: Iniciação, Canto, Exorcismo? Há-de talvez saber-se um dia que não havia arte, mas tão-só medicina.
(…)
Palavras mágicas, desenhos mágicos, eles eram a energia da vida. Lutavam contra o império da submissão, afastavam as franjas de pêlos depredadores. As letras nasciam, logo se escapavam e juntavam de novo à floresta. Nas cidades, homens sem nome, sem rosto, que se pareciam com os demónios, tinham a si atraído as palavras, as músicas e os desenhos, a fim de subjugarem os outros homens. Do alto das suas torres de controlo em duro plástico transparente, olham o caudal dos homens e dos automóveis que escorre nas ranhuras. Sabem tudo. Possuem, para espiar, grandes quantidades de microfones dissimulados, câmaras de filmar, gravadores de som. Estão ali, estão presentes. Estão nas paredes da prisão, decidiram postar-se por detrás das portas, das fechaduras e das frestas que há por todo o lado no ar, na água e sobre a terra. Já não largam aqueles que capturam nas suas armadilhas de beleza. Quem irá tentar destruí-los? Quem pegará num carvão, num giz, numa faca, numa caruma, em qualquer coisa, a fim de traçar nos objectos os estranhos sinais cabalísticos, as estranhas palavras insignificantes e ternas que libertam? Quem irá pintar o corpo e o rosto, a fim de manter ainda as paredes da prisão, a fim de impedir o tecto de descer, para que tudo seja inocente, para que toda a gente de novo fale a toda a gente?
J.M.G Le Clézio, Índio Branco (título original: Haï)
Fenda Edições
Tradução: Júlio Henriques
Há, no entanto, outra coisa: na altura em que este livro termina apercebo-me de que seguiu, sem eu disso me dar conta, e como se fosse por acaso, o desenvolvimento do cerimonial mágico de cura: Taú Sa, Beka, Kakvahaí. Serão pois estas três etapas, que arrancam o homem índio à doença e à morte, precisamente as mesmas que balizam a vereda de toda a criação: Iniciação, Canto, Exorcismo? Há-de talvez saber-se um dia que não havia arte, mas tão-só medicina.
(…)
Palavras mágicas, desenhos mágicos, eles eram a energia da vida. Lutavam contra o império da submissão, afastavam as franjas de pêlos depredadores. As letras nasciam, logo se escapavam e juntavam de novo à floresta. Nas cidades, homens sem nome, sem rosto, que se pareciam com os demónios, tinham a si atraído as palavras, as músicas e os desenhos, a fim de subjugarem os outros homens. Do alto das suas torres de controlo em duro plástico transparente, olham o caudal dos homens e dos automóveis que escorre nas ranhuras. Sabem tudo. Possuem, para espiar, grandes quantidades de microfones dissimulados, câmaras de filmar, gravadores de som. Estão ali, estão presentes. Estão nas paredes da prisão, decidiram postar-se por detrás das portas, das fechaduras e das frestas que há por todo o lado no ar, na água e sobre a terra. Já não largam aqueles que capturam nas suas armadilhas de beleza. Quem irá tentar destruí-los? Quem pegará num carvão, num giz, numa faca, numa caruma, em qualquer coisa, a fim de traçar nos objectos os estranhos sinais cabalísticos, as estranhas palavras insignificantes e ternas que libertam? Quem irá pintar o corpo e o rosto, a fim de manter ainda as paredes da prisão, a fim de impedir o tecto de descer, para que tudo seja inocente, para que toda a gente de novo fale a toda a gente?
J.M.G Le Clézio, Índio Branco (título original: Haï)
Fenda Edições
Tradução: Júlio Henriques
Haiku deficiente
hai sem ku
é triste! O que pensar?
O que fazer? Cócó.
Anónimo disse... 7.5.08
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