Kashmira

Salman Rushdie
Shalimar O Palhaço
Dom Quixote
[Tradução: Maria João Delgado]


Aos vinte e quatro anos, a filha do embaixador dormia mal com aquelas noites quentes, sempre iguais. Acordava com frequência e, mesmo quando o sono chegava, o corpo nunca tinha descanso, agitando-se e esbracejando como que a tentar libertar-se de umas terríveis grilhetas invisíveis. Por vezes, gritava de uma maneira assustadora, numa língua que não conhecia. Houve homens que lhe contaram isso, constrangidos. Poucos homens tinham tido o privilégio de estar presentes enquanto ela dormia. Portanto, as provas eram limitadas, não se chegando a um consenso; contudo, foi emergindo um padrão. Segundo um relato, fazia-o num tom gutural, entrecortado, como se estivesse a falar árabe. Árabe das Mil e uma Noites, pensou ela, a língua maravilhosa de Xerazade. Uma outra versão, descrevia as palavras dela como se de ficção se tratasse, uma espécie de klingon, como se alguém estivesse a aclarar a voz numa galáxia distante. Como um demónio a falar pela boca da Sigourney Weaver em Goshtbusters. Uma noite, por curiosidade, a filha do embaixador deixou um gravador ligado na mesinha de cabeceira, mas quando ouviu a voz gravada, aquela feiura mortal, ao mesmo tempo familiar e estranha, assustou-se de tal maneira que premiu o botão de apagar (aliás, não apagou nada de importante). A verdade continuava a ser a verdade. [...]


Ela estava à espera dele. Não era de fogo mas de gelo. Esticou ao máximo o arco dourado. Sentiu a corda contra os lábios entreabertos, sentiu a extremidade da haste da flecha contra os seus dentes cerrados, esperou uns segundos, inspirou e soltou a flecha. Não tinha hipótese de falhar. Não teria uma segunda oportunidade. Não existia nenhuma India. Apenas Kashmira e Shalimar o Palhaço.

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