Disseram-me uma vez:“Um homem pode sempre fugir, seja lá do que for, mas nunca esconder-se”.
Ao que contrapus:“Ou então pode sempre esconder-se, seja lá do que for, mas nunca fugir”.
Agora estou aqui, sozinho, sentado neste chão de poeira fina e grãos polidos, pronto finalmente para reflectir com profundidade e isenção acerca disso e de tudo o mais que me ocorra pôr em questão.
Mergulho na areia as minhas mãos nuas: agarro dela uma minúscula porção, uma presença, se tanto, num breve instante, e depois, sem mais, deixo que essa imagem se liberte de mim, escorrendo vagarosa por entre os meus dedos silenciosos e imóveis, e vejo-a, sinto-a a regressar novamente ao seu corpo original e imenso, velho como o mundo.
Estou a contar o tempo.
Primeiro, não penso nada. Nada em concreto, penso: as ideias surgem-me aos acaso, leves e impalpáveis, sensações soltas, como o vento, ou a música, e eu deixo-as flutuar em mim ou ir por aí fora, livremente.
Depois, a pouco e pouco, apercebo-me disso, do vento, da música, do que deixo e não deixo ir ou vir, e só então começo a ter um vislumbre real, embora fugaz, de como a minha compreensão das coisas é, afinal, ainda tão fraca, tão confusa e limitada.
Diz-se: “isto é o ar”, ou: “isto é a areia”, ou “isto é a água”.
Mas, ditas as palavras, ar, areia, água, olhamos em redor, e através, e longe, e o que vemos é que nada se alterou, que nada se altera realmente só com as palavras. Então, como uma longínqua e ténue luz que começasse a nascer, de súbito, nas mais profundas e insondáveis trevas, assim nós começamos também, enfim, a conseguir entender que não basta dar nomes às coisas para que o significado dessas coisas aumente, ou diminua, ou se concretize. Porque as coisas existem antes, e o que é importante é conhecer a verdadeira natureza de cada uma delas.
Todavia, dar nomes a tudo é uma das tarefas mais caracteristicamente humanas, porque só mesmo os homens são capazes de lutar e viver e morrer por coisas que apenas existem em nome, no seu espírito, nos seus desejos e inquietações.
O tempo, por exemplo: o que é ele, ao certo? Será que, ao contá-lo, o modificamos? Ou será ele que, pela contagem, nos transforma? Eis algo muito mais grave e decisivo: as transformações, as mudanças.
Nada do que nos rodeia é estático, e nós próprios somos imparáveis: tudo se move, tudo nasce, cresce, evolui e morre, constantemente. Até mesmo o deserto.
E a minha ignorância, a minha vontade de saber: como elas são grandes e inquietas.
Muitas vezes, o que parece não é, e o que é não parece. E por isso penso: poderá um homem sozinho dialogar? Ou então: poderá um homem acompanhado dialogar?
Revejo o espírito das minhas memórias mais terrestres, e sinto, através dele, que nenhuma destas questões é tão estranha como à primeira vista possa parecer: uma completa a outra, e ambas têm os seus fundamentos reais.
É que já estive em lugares, ditos civilizados, e vi coisas sem dúvida muito mais estranhas, que me fizeram reflectir e, com essa reflexão, aprender: havia pessoas a falar sozinhas, e pessoas a falar umas frente às outras e algumas das que falavam não ouviam, e algumas das que ouviam não falavam e havia as que não falavam nunca e as que falavam sempre.
Também já estive fechado em lugares vazios e estreitos, e achei-me, de repente, a falar só, comigo, em voz alta; e estou certo de que falava, realmente, porque me ouvia. Sei bem o que estou a dizer. Tudo à minha volta me ensina a escutar, e eu sei: poderosa é a palavra e poderoso é o silêncio, mas os seus poderes assemelham-se, porque palavra e silêncio são uma e a mesma coisa. Assim, tanto podemos dialogar connosco próprios como dialogar com os outros, porque umas vezes nada nos será dito, e outras vezes nada diremos.
Para crescer, até fazer-se homem, um jovem do meu povo aprende, mais que qualquer outra coisa, a nadar, a caçar, a andar a cavalo e a matar. Tudo isso tem, como é óbvio, as suas doses próprias de prazer e de sofrimento. Digo isto com conhecimento de causa, porque também eu fiz essa aprendizagem. No entanto, depois de todo o tempo que já passou desde então, perturba-me ainda que o conhecimento da morte venha primeiro que o conhecimento da dúvida. Contudo, é esse saber o âmago de todo o guerreiro, e eu, como guerreiro que sou, já devia ter resolvido estas questões antigas, para finalmente viver em paz comigo próprio, sereno com o mundo.
Agora, aqui, sozinho no coração do deserto, pergunto-me: terá um guerreiro o direito à sabedoria que tem?

Pensamentos do guerreiro no coração do deserto, Alexandre Dale
Edição: CPAI, Junho de 1993

1 comments:

Muito bonito e inteligente o que li!

Acho que vou comprar o livro!

Obrigada pela dica! :)

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