Loucura
A morte de Raul Vilar foi muito lamentada. Todos os jornais consagraram longos artigos ao grande escultor. Fazendo o seu elogio, escreveram-lhe a biografia, catalogaram-lhe as obras - entre as quais avulta esse admirável baixo-relevo "Amor" - e concordaram unanimemente em que o seu permaturo falecimento havia sido uma grave perda para a arte nacional. Depois, os anos decorreram. Hoje, poucos se lembrarão já do pobre Raul. É por isso mesmo que me decido a falar dele. Para o fazer, ninguém mais competente do que eu. Fui o seu maior amigo, o seu único amigo.
.
Que as minhas intenções não sejam desvirtuadas: este escrito tem por fim simplesmente pôr em evidência todos os elementos que possam servir de base para o estudo duma singularíssima psicologia; que possam tornar compreensível a incompreensível tragédia de uma alma, explicar o inexplicável suicídio.
.
.
(...)
.
.
Raul queria provar o seu amor. Para isso decidiu praticar um crime. Todos o condenam, decerto. No entanto, o que ninguém pode negar é que a sua prova, embora de um egoísmo atroz, não fosse a mais concludente, a maior prova de amor, como lhe chamava. "Só se ama por interesse. Não se ama um corpo disforme". Ele possuia uma criatura ideal; pois bem, destruiria toda a sua beleza. O seu amor não diminuiria... pelo contrário. Morto o corpo, amaria a alma só com a sua alma.
Isto tudo são loucuras, sei perfeitamente. Apenas no cérebro dum doido podem nascer tais pensamentos. Nós, os "homens de juízo", não pensamos nessas coisas, não pensamos em muitas coisas porque aceitámos a vida tal como ela é, tal como se convencionou que ela fosse; porque nos habituámos a ela. Raul não se habitou. Foi um desgraçado. (...)
.
.
Sá-Carneiro, Mário, Loucura, Edições Rolim, Lisboa, 1990 (4ª edição).
O escritor é esplêndido, porém o livro não conheço. Falar da obra de Mário de Sá-Carneiro é tão intenso quanto falar de sua vida. Um homem cheio de manias e excentricidades, à parte do próprio (e, infelizmente, malcompreendido por suas esquisitices). O fato é que muito se fala do modernismo português sob a ótica de Fernando Pessoa, deixando em segundo plano esse mestre da palavra. O que é uma grande lástima. Obrigado pela dica. Vou procurar o livro em sebos, bibliotecas e livrarias. Abraços do crítico da caverna cinematográfica.
Anónimo disse... 15.9.06
... figura e personagem que sempre me marcou desde cedo! pena que tenha escolhido cedo demais a porta que dá saida deste nosso presente universo! um génio, cansado e desmotivado em conhecer sua própria Obra.
musqueteira disse... 16.6.08
Enviar um comentário