Carne da minha carne
Marie Darrieussecq, O Bebé, 2003, Edições ASA, Porto
( tradução de Miguel Serras Pereira)
p. 11
Estes pezinhos que se agitam davam-me pontapés na barriga.
Não posso acreditar que tenha saído de dentro de mim.
Um dia um distribuidor bateu-me à porta, eu tinha uma grande barriga, dentro da encomenda havia o bebé, e eu deixei de ter a barriga grande.
A cria do ser humano: deve haver de facto qualquer coisa a procurar, a compreender a esse respeito.
É uma experiência repetitiva e descosida, e quando o bebé dorme a vida retoma o sei curso, mas quando está acordado é a vida dele que domina.
Estranhos dias do início, dos quais eu pouco ouvira falar; talvez porque durante eles se estabelece numa intimidade exclusiva, o vínculo, a asfixia, a vertigem - dias divididos aproximadamente em seis partes, nem dia nem noite, uma ou duas horas para a mamada, a mudança de fraldas, o adormecer de novo, uma ou duas horas de sono, e recomeça-se.
Não posso acreditar que tenha saído de dentro de mim.
Um dia um distribuidor bateu-me à porta, eu tinha uma grande barriga, dentro da encomenda havia o bebé, e eu deixei de ter a barriga grande.
A cria do ser humano: deve haver de facto qualquer coisa a procurar, a compreender a esse respeito.
É uma experiência repetitiva e descosida, e quando o bebé dorme a vida retoma o sei curso, mas quando está acordado é a vida dele que domina.
Estranhos dias do início, dos quais eu pouco ouvira falar; talvez porque durante eles se estabelece numa intimidade exclusiva, o vínculo, a asfixia, a vertigem - dias divididos aproximadamente em seis partes, nem dia nem noite, uma ou duas horas para a mamada, a mudança de fraldas, o adormecer de novo, uma ou duas horas de sono, e recomeça-se.
p. 141
Pelo meu lado, nove meses depois do seu nascimento, a origem do bebé perdeu-se. Encomenda postal, meteorito, célula obtida por clonagem, quimera que veio ao mundo, o anel de ADN que o sustenta é estranho à minha intuição. A sua parte de genes não tem qualquer relação com a sua existência.
Um momento de amor encarnado; o mar, o mumúrio da água, o sol de um fim de verão: outros tantos clichés que deitaram corpo. Ele deixa-os ficar onde estão, nas nossas memórias: recordações que não lhe dizem respeito.
Aquilo que a pouco e pouco dele sei alimenta-se apenas do tactear que nos aproxima. É feito de palavras e de tempo, de carne e de impulsos. Nenhum programa o codifica; nenhum desejo decidiu o que ele é.
Pelo meu lado, nove meses depois do seu nascimento, a origem do bebé perdeu-se. Encomenda postal, meteorito, célula obtida por clonagem, quimera que veio ao mundo, o anel de ADN que o sustenta é estranho à minha intuição. A sua parte de genes não tem qualquer relação com a sua existência.
Um momento de amor encarnado; o mar, o mumúrio da água, o sol de um fim de verão: outros tantos clichés que deitaram corpo. Ele deixa-os ficar onde estão, nas nossas memórias: recordações que não lhe dizem respeito.
Aquilo que a pouco e pouco dele sei alimenta-se apenas do tactear que nos aproxima. É feito de palavras e de tempo, de carne e de impulsos. Nenhum programa o codifica; nenhum desejo decidiu o que ele é.
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