Virginia Woolf, Orlando




"Ele - pois não restavam dúvidas a respeito do sexo a que pertencia, muito embora a moda da época não fosse muito clara a esse respeito - entretinha-se a desferir golpes contra a cabeça de um mouro, a qual se encontrava pendurada nas vigas. Aquela era da cor de uma velha bola de futebol, e teria o mesmo formato se as faces não gossem desarnadas e não se vissem uma ou duas madeixas de cabelo emaranhado e crespo, semelhante aos pêlos de um coco.

(...)

O único recurso que nos resta é olhar pela janela. Vemos pardais; vemos estorninhos; vemos algumas pombas e uma ou duas gralhas, todos ocupados com o que lhes diz respeito. Um procura uma minhoca, outro um caracol. Um voa para um ramo, outro dá uma corridinha pela turfa. É então a vez de um criado atravessar o pátio. Usa um avental de baeta verde e é provável que esteja envolvido em alguma intriga com uma das criadas, mas, dado não possuirmos provas nesse sentido, só podemos deixar as coisas tal qual elas estão. Espessas ou leves, as nuvens vão passando, alterando a cor da relva. O relógio de sol marca as horas através daquela forma misteriosa que o caracteriza. Mole, sem qualquer objectivo preciso, o espírito começa a formar uma ou duas perguntas a respeito desta vida. A vida canta, ou melhor, zumbe, como se fosse uma chaleira de água a ferver. Vida, vida, que és tu? Luz ou sombra, o avental da baeta do criado ou a sombra do estorninho projectada na relva?
Numa manhã estival, quando todos admiram a flor da ameixeira e a abelha, partamos então à sua descoberta. A assobiar ou a cantarolar baixinho, perguntemos ao estorninho (ave bastante mais sociável que a cotovia) que pensará ele quando vasculha no caixote do lixo, e, por entre os gavetos, encontra alguns fios de cabelo do ajudante do cozinheiro. Encostemo-nos ao portão da quinta e perguntemos o que é a vida. Vida, vida, vida!, canta a ave como se nos tivesse ouvido. É que ela sabe ao certo o que significa este hábito maçador de fazer perguntas a torto e a direito, quer dentro quer fora de casa, e de desfolhar malmequeres, o que acontece com frequência aos poetas quando não sabem o que dizer. «Então», pensa o pássaro, «perguntam-me o que é a vida; Vida, vida, vida!»
Depois, avancemos devagar pelo caminho que leva à charneca e alcancemos uma colina violeta. Atiremo-nos ao chão e sonhemos; vemos um gafanhoto transportar uma palhinha para casa. E ele diz-nos (se aos ruídos por si produzidos se pode dar nome tão sagrado e terno) que a vida é trabalho, ou pelo menos assim interpretamos os seus cri-cri sufocados pelo pó. As formigas e as abelhas concordam, mas, e se ficarmos aqui deitados o tempo suficiente para interrogarmos as borboletas nocturnas que esvoaçam por entre as pálidas campainhas, elas murmurar-vos-ão ao ouvido os mesmos disparates que ouvimos quando há tempestade e os fios dos telégrafos zumbem: «Riso! Riso!», exclamam as borboletas.Depois de termos interrogado um homem, uma ave e alguns insectos – já que, e ao que consta, os peixes vivem em grutas verdes e solitárias e não ouvem nem falam (e talvez sejam eles os únicos a saber o que é a vida) – depois de os termos interrogado a todos sem nada aprender, tendo apenas arrefecido e envelhecido (pois não tínhamos nós desejado encontrar maneira de aprisionar num livro algo tão raro e consistente a que poderíamos chamar «o sentido da vida»?), vemo-nos obrigados a voltar atrás e a dizer ao leitor que espera há tanto tempo que lhe respondamos – enfim, que não sabemos.

(...)

«É o ganso!», gritou Orlando. «O ganso selvagem...»
E então soou a décima segunda badalada da meia-noite; a décima segunda badalada da meia-noite de quinta-feira, 11 de Outubro de 1928."



Virginia Woolf, Orlando
(eu li nas edições europa américa (não era esta a capa, mas...), tradução de Lucília Rodrigues)

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