O Físico Prodigioso

"Balanceando o erecto corpo ao passo do cavalo, vinha descendo a encosta. O sol, muito alto ainda, iluminava de crepitações o vale que, selvárico, se abria ante o seu olhar que pervagava abstracto, sem distinguir o mato que floria, as pedras que rebrilhavam pardas e cinzentas, os pequenos animais que esvoaçavam, corriam, rastejavam, ou se ficavam suspensos, sem temor, fitando a mole imensa e caminhante de cavalo e cavaleiro. No fundo do vale, por entre os renques de choupos e salgueiros, entrecortada estava a chapa metálica e estreita de um rio. Foram para ele descendo, o cavaleiro, na mesma direcção absorta, sofreando o passo, que se apressava agora, do sedento cavalo, cujas narinas se dilatavam.

(...)

O velho chegou ao caminho e era mais fácil puxar o carro. Seguiu o arbusto que rolava seco no vento e que parou enganhcado noutro à beira do caminho. Deitada no carro, a jovem cantava em voz baixa, uma cantiga que cortava o coração do velho:

Ao rio perguntei por meu amigo
aquele que há tanto é partido
e por quem morro, ai!
Ao rio perguntei por meu amado,
e u será que ele se há banhado,
e por quem morro, ai!

O carro ia passando, e dele vinha um cheiro como o da roseira, só que mais acre.

Aquele que há tanto é partido
u lavou triste seu corpo velido,
e por quem...

... e o carro estacou sob um peso acrescentado e súbito. Ela sentou-se e não viu ninguém. O velho, ficando os pés, recomeçou a puxar. Ela sentiu uns braços que a abraçavam e nos lábios a pressão de outros lábio; e havia um corpo que ternamente se encostava ao seu.
Quando o carro acabou de passar, a roseira ressequida desprendeu-se, e foi rolando no vento."

Jorge de Sena, O Físico Prodigioso
Edições Asa

2 comments:

Hum...
JV

pois é, li acabei e adorei, obrigada JV

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