As Crisálidas



Quando era muito pequeno sonhava às vezes com uma cidade - o que era estranho porque tais sonhos começaram antes mesmo de eu saber o que era uma cidade. Mas essa cidade, aninhada na curva de uma grande baía azul, vinha-me ao pensamento. Via as ruas e os edifícios que as ladeavam, a zona ribeirinha e até os barcos no porto - embora, acordado, nunca tivesse visto o mar, nem um barco...
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(...)
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Era exactamente como eu vira nos meus sonhos. Um sol mais brilhante do que Waknuk jamais conhecera jorrava sobre a larga baía azul onde as séries de ondas coroadas de branco avançavam lentamente para a praia. Barcos pequenos, alguns com velas coloridas e outros sem velas nenhumas, dirigiam-se para o porto, onde já se encontravam outras embarcações. Aglomerada ao longo da costa, e tornando-se menos densa à medida que se estendia na direcção dos montes, ficava a cidade com as suas casas brancas incrustadas entre parques verdes e jardins. Consegui até distinguir os pequenos veículos que circulavam pelas largas avenidas ladeadas de árvores. Um pouco para o interior, ao lado de um quadrado verde, uma luz forte piscava numa torre e uma máquina do feitio de um peixe descia, a flutuar.
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Era tão familiar que quase me iludi. Momentaneamente, imaginei que acordaria e me encontraria na minha cama, em Waknuk. Peguei na mão de Rosalind, para me convencer da realidade.
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- É real, não é? Tu também vês? - perguntei-lhe.
- É lindo, David. Nunca pensei que pudesse haver uma coisa tão encantadora. E há mais qualquer coisa, de que nunca me falaste.
- O quê?
- Escuta, não sentes? Abre mais a tua mente... Petra, querida, se pudessses parar um momento de transmitir os teus pensamentos radiantes...
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Fiz o que ela me mandou. Apercebi-me de que o piloto da nossa máquina comunicava com alguém, em baixo, mas atrás disso, como um fundo, havia algo de novo e desconhecido para mim. Em termos de som, não seria diferente do zumbido de um cortiço de abelhas; em termos de luz, uma claridade velada.
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- Que é? - perguntei, intrigado.
- Não adivinhas, David? É gente, montes e montes de gente do nosso género!
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Calculei que ela devia ter razão e prestei atenção durante um bocado - até a excitação de Petra levar a melhor sobre ela e eu ser obrigado a proteger-me.
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Agora sobrevoávamos terra e olhámos para baixo, para a cidade que vinha ao nosso encontro.
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- Começo finalmente a acreditar que é real e verdadeiro - disse a Rosalind. - Tu nunca estiveste comigo, das outras vezes.
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Ela virou a cabeça. A Rosalind interior estava no seu rosto, a sorrir de olhos brilhantes. A armadura caíra. Deixou-me olhar debaixo dela. Era como uma flor a abrir.
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- Desta vez, David... - começou.
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Depois o seu pensamento foi apagado. Cambaleámos e levámos as mãos à cabeça. Até o chão debaixo dos nossos pés tremeu um pouco.
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Vieram protestos angustiados de todas as direcções.
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- Oh, perdão! - desculpou-se Petra, dirigindo-se à tripulação da nave e à cidade em geral. - Mas é terrivelmente excitante!
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- Desta vez, querida, perdoamos-te - respondeu-lhe Rosalind. - É, de facto.
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WYNDHAM, John, As Crisálidas, Editorial Caminho, Lisboa, 1984.

1 comments:

Por acaso se cruzam as palavras. As Crisálidas em particular, Wyndham e Ficção em geral são interesses que me são caros. Outros autores aqui citados como Anthony Giddens e muitos outros. Um abraço pelas escolhas. Cheguei aqui ao procurar "As Crisálidas" no Google, queria uma capa para um post semelhante a este...

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