locked-in












Jean-Dominique Bauby
"O Escafandro e a Borboleta"
Colecção Dois Mundos
Edição Livros do Brasil, 1999

(tradução: Clarisse Tavares)



Prólogo
Por trás da cortina de pano roída pelas traças, uma claridade leitosa anuncia a aproximação da manhã. Doem-me os calcanhares, sinto a cabeça apertada num torno, e todo o meu corpo está encerrado numa espécie de escafandro. O meu quarto sai lentamente da penumbra. Observo pormenorizadamente as fotografias dos meus queridos, os desenhos das crianças, os cartazes, um pequeno ciclista de folha enviado por um camarada na véspera do Paris-Roubaix, e o cavalete que sustenta a cama onde estou incrustado há seis meses como um bernardo-eremita sobre o seu rochedo.
Não preciso de reflectir durante longo tempo para saber onde me encontro e recordar-me de que a minha vida sofreu uma reviravolta naquela sexta-feira, dia 8 de Dezembro do ano passado.
Até essa altura, nunca tinha ouvido falar do tronco cerebral. Naquele dia descobri abruptamente essa peça fundamental do nosso computador de bordo, passagam obrigatória entre o cérebro e os terninais nervosos, quando um acidente cardio-vascular me deixou o dito tronco fora do circuito. Antigamente chamava-se "ligação ao cérebro" e a sua falta provocava simplesmente a morte. O progresso das técnicas de reanimação tornou o castigo mais sofisticado. É possível escapar, mas mergulha-se naquilo que a medicina alglo-saxónica baptizou muito justamente de locked-in-syndrome: paralisado da cabeça aos pés, o paciente fica encerado dentro de si próprio, com o espírito intacto e os batimentos da pálpebra esquerda como único meio de coumunicação.
[...]

Nunca tinha visto tantas batas brancas no meu pequeno quarto. Os enfermeiros, os ajudantes, a cinesioterapeuta, os internos e até mesmo o grande chefe do serviço, todo o hospital se tinha deslocado até ali para a grande ocasião. Quando eles entraram, empurrando o engenho até ao meu leito, julguei, a princípio, que um novo locatário vinha tomar posse do local. Instalado em Berck havia algumas semanas, aproximava-me mais, a cada dia que passava, das margens da consciência, mas não concebia a ligação que poderia existir entre uma cadeira de rodas e eu.
Ninguém me havia traçado um quadro exacto da minha situação e, com base em palavras respigadas aqui e além, forjara a certeza de recuperar muito em breve o gesto e a palavra.
[...]

Com os cotovelos pousados sobre a pequena mesa rolante de fórmica que lhe serve de secretária, Claude relê estes textos que extraímos pacientemente do vazio todas as tardes há dois meses. Sinto prazer em reencontrar certas páginas. Outras desiludem-nos. Tudo isto fará um livro? Enquanto a escuto, observo as suas madeixas escuras, as suas faces muito pálidas a que o sol e o vento mal conseguiram dar um tom rosado, as suas mãos percorridas por longas veias azuladas e o cenário que se tornará a imagem-recordação de um Verão aplicado. O grande caderno azul de que ela preenche cada primeira página das folhas com uma letra regular e conscienciosa, o estojo escolar cheio de canetas de reserva, a pilha de guardanapos de papel prontos para as piores expectorações, e a bolsa de ráfia vermelha da qual extrai, de vez em quando, dinheiro para ir beber um café. Pelo fecho de correr entreaberto da pequena bolsa, observo uma chave de quarto de hotel, um bilhete de metro e uma nota de cem francos dobrada em quatro, como se fossem objectos trazdos por uma sonda espacial enviada à Terra para estudar os métodos de habitat, de transportes e de trocas comerciais em vigor entre os terrestres. Este espectáculo deixa-me desamparado e pensativo. Existirão neste cosmos chaves para abrir o meu escafandro? Uma linha de metro sem estações? Uma moeda suficientemente forte para resgatar a minha liberdade? É preciso procurar noutro lugar. É o que vou fazer.

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