nenhum olhar

"Nenhum Olhar"
José Luís Peixoto
Editora Temas & Debates

“Hoje o tempo não me enganou. Não se conhece uma aragem na tarde. O ar queima, como se fosse um bafo quente de lume, e não o ar simples de respirar, como se a tarde não quisesse já morrer e começasse aqui a hora do calor. Não há nuvens, há riscos brancos muito finos, desfiados de nuvens. E o céu, daqui, parece fresco, parece a água limpa de um açude. Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu mas em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como o céu e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu. Um açude sem peixes, sem fundo, este céu. Nuvens, veios ténues. E o ar a arder por dentro, chamas quentes e abafadas na pele, invisíveis. Suspenso, como um homem cansado, ar. Há-de ser um instante em que não se veja um pardal, em que não se ouça senão o silêncio que fazem todas as coisas a observar-nos. Chegará. Hei-de distingui-lo no horizonte. Tão bem quanto sei isto agora, sabia-o ontem quando entrei na venda do judas e pedi o primeiro copo e pedi o segundo e pedi o terceiro. Mais, sabia que por toda a planície se calarão as cigarras e os grilos. De encontro ao céu, as oliveiras e os sobreiros hão-de parar os ramos mais finos; num momento, hão-de tornar-se pedra.

[...]

O homem que está fechado dentro de um quarto sem janelas a escrever parou de repente a meio de uma frase e o fim, para ele, foi a tinta que desapareceu das páginas que tinha vivido, foram as folhas de papel que fugiram de si próprias e se tornaram o mais absoluto vazio de tudo, foi a memória que se transformou nem sequer em ar, nem sequer em vento. O mundo acabou. E não ficou nada. Nem as certezas. Nem as sombras. nem as cinzas. Nem os gestos. Nem as palavras. Nem o amor. Nem o lume. Nem o céu. Nem os caminhos. Nem o passado. Nem as ideias. Nem o fumo. O mundo acabou. E não ficou nada. Nenhum pensamento. Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar."

2 comments:

Gostei muito deste livro, foi o primeiro que li do Peixoto.


"Penso: talvez haja uma luz dentro dos homens, talvez uma claridade, talvez os homens não sejam feitos de escuridão, talvez as certezas sejam uma aragem dentro dos homens e talvez os homens sejam as certezas que possuem."

Também foi o primeiro que li dele, e o único até agora. Gostei muito: poético, muito visual e revelador de grande conhecimento da "interioridade" do nosso país.
Recomenda-se.

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