O Estrangeiro


Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: «Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentimos pêsames». Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.

(…)

Sentia-me agora outra vez calmo. Estava estafado e deixei-me cair sobre a cama. Julgo que dormi, pois acordei com estrelas sobre o rosto. Subiam até mim ruídos campesinos. Aromas de noite, de terra e de sol refrescavam-me as têmporas. A paz maravilhosa deste Verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da noite, soaram os apitos. Anunciavam possivelmente partidas para o mundo que me era sempre indiferente. Pela primeira vez, há muito tempo, pensei na minha mãe. Julguei ter compreendido porque é que, no fim de uma vida, arranjara um «noivo», porque é que fingia recomeçar. Também lá, em redor desse asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma treva melancólica. Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido libertada e pronto a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do Mundo. Por o sentir tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio.

Albert Camus
O Estrangeiro
Introdução de Jean-Paul Sartre

4 comments:

muito bom este livro! muito boa a introdução!

"O Estrangeiro". Um dos livros da minha vida.
Conheces "A Queda"? Completamente vertiginoso.

kyler,

já tens música dedicada...

A primeira vez que o li tinha quinze anos. Depois disso li-o várias vezes. Também é um dos meus livros da minha vida.

"No absurdo da condição humana e a revolta como sentido"

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