para a frente

Javier Cercas
Soldados de Salamina
Trad. Helena Pitta
Edições Asa, 1ª Ed., 2002


Foi no Verão de 1994, faz agora mais de seis anos, que ouvi falar pela primeira vez do fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas. Três coisas acabam de me acontecer por esse altura: a primeira foi o meu pai ter morrido; a segunda foi a minha mulher ter-me abandonado; a terceira foi eu ter abandonado a minha carreira de escritor. Minto. A verdade é que dessas três coisas, as duas primeiras são exactas, exactíssimas; mas não a terceira. Na realidade, a minha carreira como escritor não havia maneira de arrancar, de modo que dificilmente poderia abandoná-la.

(...)

Vi o meu livro inteiro e verdadeiro, o meu relato real e completo, e soube que me faltava escrevê-lo, passá-lo a limpo, porque estava na minha cabeça do princípio (“Foi no Verão de 1994, faz agora mais de seis anos, que ouvi falar pela primeira vez do fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas”) ao fim, um fim em que um velho jornalista fracassado e feliz fuma e bebe whisky num vagão-restaurante de um comboio nocturno que viajava pela campina francesa entre gente que janta e é feliz e empregados de mesa de lacinho preto, enquanto pensa num homem acabado que teve a coragem e o instinto da virtude e por isso nunca se enganou ou não se enganou no único momento da vida em que importava deveras não se enganar, pensa num homem que foi honrado e valente e puro na pureza e no livro hipotético que o ressuscitará quando tiver morto, e então o jornalista olha para o seu reflexo tristonho e envelhecido na janela que lambe a noite até o reflexo se dissolver lentamente e na janela surgir um deserto interminável e ardente, e um soldado sozinho, levando a bandeira de um país que é todos os países e que só existe porque este soldado levanta a sua bandeira proscrita, jovem esfarrapado, coberto de pó e anónimo, infinitamente pequeno naquele mar escaldante de areia infinita, caminhada para a frente sob o sol negro da janela, sem saber muito bem para onde vai nem com quem vai nem porque vai, sem se importar muito desde que seja para a frente, para a frente, para a frente, para a frente.

3 comments:

Este livro é genial.

é sim senhor!!! não há muitos assim...limpos, sem poeira, com as palavras certas.

Vim à procura de um escritor, que me dava prazer e sorrisos interiores.Mas pergunto-me se me foi retirado o privilégio de ler a sua arte?
O nome?não sei...mas talvez jctp.
Sem querer ser inoportuno.
P.s:fazem falta blogs como este, para louvar a nunca assaz louvada literatura.

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