O Fio da Navalha


"Difícil é andar sobre o aguçado fio de uma navalha; é árduo, dizem os sábios, é o caminho da Salvação."




"Eu fora admitido, durante a minha permanência em Chicago, como sócio temporário de um clube que dispunha de uma boa biblioteca; na manhã seguinte, fui até lá passar os olhos por uma ou duas revistas universitárias, que quem não é assinante tem dificuldade em obter. Era cedo e lá só havia mais uma pessoa, sentada numa vasta poltrona de couro e parecendo absorta na leitura. Foi com surpresa que reconheci Larry. Era a última pessoa que esperaria encontrar em tal lugar. Ergueu os olhos quando passei por ele, reconheceu-me e fez menção de se levantar.
- Não se incomode - disse eu. E depois, quase que automaticamente: - Que está a ler?
- Um livro - replicou ele, mas com um sorriso tão simpático que a secura da resposta não podia melindrar.
Fechou o livro e, fitando-me com aqueles seus olhos singularmente opacos, segurou-o de modo a não me deixar ver o título.
- Divertiu-se muito ontem à noite? - perguntei.
- Muitíssimo. Cheguei a casa às cinco da manhã.
- É uma façanha estar aqui tão cedo.
- Venho muito aqui. Em geral, a esta hora tenho a sala à minha disposição.
- Não o incomodarei.
- O senhor não está a incomodar-me - disse, sorrindo de novo; ocorreu-me então que o seu sorriso era de uma extraordinária doçura. Não animado, nem vivo; era um sorriso que parecia iluminar-lhe o rosto com alguma luz interior. Estava sentado num recanto formado por prateleiras salientes. Apoiou a mão no braço da poltrona a seu lado e prosseguiu: - Não quer sentar-se um pouco?
- Está certo.
Larry entregou-me o livro que segurava. Vi que se tratava de Principles of Psychology, de William James. É, naturalmente, uma obra clássica, e importante na história da ciência de que se ocupa; de agradável leitura, além do mais; mas não era o tipo de livro que esperaria ver nas mãos de de pessoa tão nova, um aviador, que dançara até às cinco da manhã.
- Porque lê isto? - perguntei.
- Sou muito ignorante.
- É também muito novo - repliquei sorrindo"



(...)



"- Era um homemzinho baixo de cabelos vermelhos, um irlandês - disse Larry. - Costumávamos chamar-lhe Patsy e tinha mais vivacidade que qualquer outra pessoa que jamais conheci. Céus, era como o azougue! Tinha uma cara engraçada e um sorriso engraçado, de modo que, só de olhar para ele, a gente sentia vontade de rir. Era um diabo temerário e fazia as maiores loucuras; estava sempre a ser chamado à ordem pelos superiores. Não sabia o que era medo e, depois de ter escapado da morte por um triz, o rosto alargava-se-lhe num sorriso, como se aquilo fosse a coisa mais engraçada deste Mundo. Mas era um aviador nato e, lá em cima, nas nuvens, sabia ser frio e cauteloso. Ensinou-me muita coisa. Era um pouco mais velho que eu e tomou-me sob a sua protecção; isto era realmente um pouco cómico, considerando-se que eu tinha bem umas seis polegadas a mais de altura que ele e, se por um acaso brigássemos, poderia pô-lo K.O. em dois tempos. Foi o que aconteceu, certa vez, em Paris, quando ele estava bêbado e fiquei com medo de que se metesse em algum sarilho.
Larry fez uma pausa e continuou:
- Não me sentia muito à vontade quando me reuni ao esquadrão e tinha medo de não me sair bem, mas ele obrigou-me a ter confiança em mim. Tinha ideias engraçadas acerca da guerra; não sentia ódio aos alemães; gostava de lutar e achava divertidíssimo combatê-los. Não podia considerar o facto de deitar abaixo um avião inimigo a não ser como uma coisa engraçadíssima. Era imprudente e louco e irresponsável, mas ao mesmo tempo, tão sincero que a gente não podia deixar de lhe querer bem. Daria a um companheiro a sua última moeda, com a mesma facilidade que aceitaria a dele. Se um de nós se sentia isolado, ou com saudades de casa, ou com medo, como algumas vezes me aconteceu, ele logo o percebia e, a cara feia a enrugar-se de riso, dizia exactamente aquilo que podia fazer a gente sentir-se bem outra vez.
Larry puxou uma cachimbada e Suzanne esperou que ele continuasse.
- Costumávamos manobrar de forma a ter as nossas licenças junto e, quando íamos para Paris, ficava endiabrado. Divertíamo-nos à grande. Íamos ter uns dias de licença, em princípios de Março, isto em 1918, e traçámos os nossos planos de antemão. Nada havia que não prentendêssemos fazer! Na véspera da partida, recebemos ordens de voar sobre as linhas inimigas e apresentar o nosso relatório. De súbito, demos com alguns aviões alemães e, quando menos esperávamos, estávamos no meio de uma batalha. Um deles perseguiu-me mas apanhei-o primeiro. Olhei para ver se ele ia cair e vi outro aparelho no meu encalço. Mergulhei para ver se escapava, mas o inimigo aproximou-se como um relâmpago e pensei que estava liquidado; nisto vi Patsy cair sobre ele como se fosse um raio e despejar-lhe todas as munições que tinha. Os alemães deram-se por vencidos e fugiram e nós voltámos às nossas linhas. O meu avião estava bastante avariado e mal consegui aterrar. Patsy chegara antes de mim. Quando desci do meu avião, vi que tinham acabado de o tirar do seu. Estava deitado no chã; esperavam que chegasse a ambulância. Ele sorriu, ao ver-me. Disse:
- Derrubei aquele tipo que vinha atrás de si.
- Que foi que aconteceu, Patsy? - perguntei.
- Oh, nada. Atingiu-me na asa.
Estava mortalmente pálido. De súbito uma expressão estranha cobriu-lhe o rosto. Só nesse momento percebeu que estava agonizante; a ideia da morte jamais lhe passara pela cabeça. Antes que alguém o pudesse impedir, sentou-se e soltou uma gargalhada:
- Ora, essa é boa!
Caíu morto. Tinha vinte e dois anos. Ia casar-se, quando acabasse a guerra, com a noiva que deixara na Irlanda."



"O Fio da Navalha", W. Somerset Maugham, Edição Livros do Brasil, 1967, Tradução de Lígia Junqueira Smith

15 comments:

Um livro gigantesco

Um belo livro, de fácil leitura e muita reflexão ;)

Este livro, fazem já cinqüenta anos, mudou em mim a maneira de ser, de pensar e mesmo a forma de apreciar de obras literárias; mas não bruscamente, e a cada releitura, parcial ou completa, era como se algo se me acrescentasse, algo que definiria hoje como a sabedoria que vem de saber-se ignorante, e a curiosidade mansa que encoraja a aprender o possível.

gostei tanto quando o li , la por volta de mil novecentos e oitenta e bolinhas, que o dei de presente pro cara que eu gostava. nunca mais comprei outro. como o cara, o livro ficou guardado na gaveta das boas lembranças...

Um livro maravilhoso,único.Li e vi o filme,o guardo carinhosamente nas paginas de minha memoria.
Beijos Mordidos.

Quando li este livro tinha os meus 17 anos. Hoje, com 67, sempre que falo de livros com alguém este é o primeiro a ser citado por mim. Marcou-me profundamente. Continua actual porque o tema faz parte das inqietações do ser Humano enquanto tal.
Um romance que se sorve avidamente.

Não sei o que vocês acham mas foi o pior livro que eu já li!
O único em que adormeci a ler!
2/10

Este livro foi-me oferecido 44 anos atrás 2 vezes pela mesma pessoa, alguém muito querido, e duas vezes o li. Gosto muito da citação que abre o livro.
Claro, a magia ninguém a tira...

ótimo livro.. nao passei das primeiras paginas ainda (estou +- na 60) mas é incrivel como o autor descreve as coisas

Bah, Também li lá pelos 80... Triste ver hoje uma geração inteira onde poucos têm apreço pela leitura...

Li este livro por indicaçao de meu pai, sociologo. Foi o livro que marcou minha vida e o considero um dos melhores que li até hoje. Os pensamentos do autor, as situaçcoes que ele nos apresenta, nos levam a uma reflexao profunda e absurdamente empolgante. Essa frase é histórica. Especialmente quando ele diz também, em outras palavras, que a pessoa ao passar pela vida deve deixar rastros, maiores que aqueles, quando uma apedra atirada ao rio deixa na superfície das águas!!!! è meu livro de cabeceira!!! classico!

Adorei!:

http://numadeletra.com/o-fio-da-navalha-de-somerset-maugham-47211

Tinha apenas 18 anos, sufocou-me a doçura com que o autor nos leva pela mão na descoberta do nosso ser , do nosso caminho, em plena adolescencia, em pleno PREC, maravilhoso..., recomendo a quem saiba ler que experimente .

Os livros exercem sobre nós um grande fascínio.Neste momento que passa, 50 anos depois, ainda sinto a magia que "O Fio da Navalha" trouxe a esta casa, a minha casa. Todos nós falávamos de livros, todos nós adormecíamos a ler, todos nós falávamos de ideias. Os livros eram companhia obrigatória de todos os lugares.

As ideias, os ideais, as palavras estavam sempre presentes depois do jantar. Longas conversas à volta de uma mesa muito simples animavam a nossa alma! Eu, às 21 horas, tinha de me ausentar,pois, uma noite de sono era obrigatória nesse tempo. Sonhava, sim, sonhos maravilhosos...Um rádio portátil minúsculo acompanhava.me antes de adormecer.Ouvia ópera...Outros tempos, o meu tempo...

Os livros exercem sobre nós um grande fascínio.Neste momento que passa, 50 anos depois, ainda sinto a magia que "O Fio da Navalha" trouxe a esta casa, a minha casa. Todos nós falávamos de livros, todos nós adormecíamos a ler, todos nós falávamos de ideias. Os livros eram companhia obrigatória de todos os lugares.

As ideias, os ideais, as palavras estavam sempre presentes depois do jantar. Longas conversas à volta de uma mesa muito simples animavam a nossa alma! Eu, às 21 horas, tinha de me ausentar,pois, uma noite de sono era obrigatória nesse tempo. Sonhava, sim, sonhos maravilhosos...Um rádio portátil minúsculo acompanhava.me antes de adormecer.Ouvia ópera...Outros tempos, o meu tempo...

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