Em volta da casa mortuária encontrávamo-nos em pequenos grupos. Falávamos em voz baixa. A morte de Bento Gonçalves era uma grande perda para nós.
- Mais um que mataram! – dizíamos.
Tocou para o rancho, mas não comemos. Soava-nos tão triste aquele bater de louça de alumínio em cima das mesas de madeira, de que não tardaríamos a tirar a mais velha.
Tocou a recolher, mas não dormimos. Na casa mortuária vestiam Bento Gonçalves. Com dificuldade lhe encontrámos uma camisa. Tudo dava. O dinheiro recebido dos trabalhos que fazia para fora ia inteiramente para o colectivo.
Era assim no Campo. Quanto se recebia, fosse dinheiro, medicamentos, comida ou roupas, tudo se confiava ao colectivo, que o distribuía conforme as necessidades.
No Campo iluminou-se a carpintaria. Um grupo de camaradas encaminhou-se para o refeitório e escolheu uma mesa. E, na noite, começámos a ouvir as primeiras marteladas, para a desconjuntar. Ressoavam por todo o campo, repercutiam em nós.
Já distinguíamos todos aqueles sons. Não tardávamos em ouvir os rangidos das serras cortando tábuas, depois novamente o martelar, mas dos pregos, ora mais apressado, ora mais lento. E por fim o silêncio. Estava feito o caixão.
Na caserna não dormíamos. Havia o lampejo de um fósforo a acender um cigarro, o choro abafado de um de nós a recordar gestos ou palavras da vida de Bento Gonçalves, ouviam-se palavras que a revolta, no silêncio, transformava em gritos:
- Miseráveis! Assassinos!
(…)
Foi uma noite serena e quente. Entravam borboletas e voavam em volta da lâmpada da casa mortuária. De quando em quando ouvíamos os brados das sentinelas, que se sobrepunham ao som distante do motor da central eléctrica.
Tocou à alvorada.
(…)
Chegou a camioneta com panejamentos pretos. Ela nos trazia ao Campo, ela nos levava ao cemitério quando morríamos.
Na casa mortuária fechava-se o caixão e os camaradas mais íntimos transportavam-no até à camioneta, enquanto o chefe dos guardas se sentava ao lado do condutor. Subiam para acompanhar o corpo dez camaradas que tínhamos escolhido, um de cada caserna.
Perfilávamo-nos nas duas alas que formáramos, os chapéus caíam nas mãos que desciam quando o caixão saía e era colocado na carrinha.
Começava o desfile.
Sempre assim era quando um camarada morria. A camioneta arrancava e rodava lentamente e, à medida que avançava, íamos desfazendo as alas e caminhando atrás.
Assim seguíamos até ao portão do Campo. A carrinha ficava então oculta por nós, para só se verem os dez camaradas de pé, rodeando o caixão.
Abria-se o portão e a camioneta seguia, depois de uns instantes de paragem em cima da passadeira sobre a vala. Era a última despedida.
Ali ficávamos imóveis, todos nós, magros, esverdeados pelo paludismo, na nossa farda de caqui amarelo, com a mesma expressão de revolta por mais um camarada que o Tarrafal matara.
Arrancava a camioneta e rodava então veloz até ao cemitério da Achada, onde não havia registo, nem toque de sineta, nem flores, nem palavras, mas apenas os dois coveiros cabo-verdianos, à beira do coval aberto no talhão que nos estava destinado.
Caía a terra sobre o caixão e nós cerrávamos o punho na última saudação ao camarada morto e para ele e para nós murmurávamos:
- A luta continuará, camarada!


Tarrafal, Editorial Caminho, Lisboa, 1978 (2ª edição)

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