A Substância do Amor

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Jorge Luís Borges soube que tinha morrido quando, tendo fechado os olhos para melhor escutar o longínquo rumor da noite crescendo sobre Genebra, começou a ver. Distinguiu primeiro uma luz vermelha, muito intensa, e compreendeu que era o fulgor do sol filtrado pelas suas pálpebras. Abriu os olhos, inclinou o rosto, e viu uma fileira de densas sombras verdes. Estava estendido de costas numa plantação de bananeiras. Aquilo deixou-o de mau humor. Bananeiras?! Ele sempre imaginara o paraíso como uma enorme biblioteca: uma sucessão interminável de corredores, escadas e outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e todos eles com livros até ao tecto.
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Ela queira que ele lhe inventasse nomes, sei lá, Vosso Esplendor, Musa Paradisíaca (o nome latino da bananeira), Estrela da Manhã. Coisas assim, tanto pior se parecessem ridículas. Queria declarações personalizadas. Não lhe bastava saber que era a única mulher na vida dele. Queira que ele a fizesse sentir a Única Mulher.
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A Mãe concordou. Porém, ficou aborrecida. O genro era um chato, tinha de reconhecer, mas jogava muito bem xadrez. Sempre que ela ganhava ele dizia: "hoje deixei-a ganhar". A sogra sorria:
- Não. Hoje eu deixei-te perder.
(As mulheres são sempre mais originais).
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AGUALUSA, José Eduardo, A Substância do Amor e outras crónicas, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000 (2ª edição).

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